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quarta-feira, 17 de abril de 2024

UMA MAÇÃ POR SEMANA!

UMA MAÇÃ POR SEMANA!


Segundo de quatro filhos fiquei órfão de pai aos quatro anos de idade. Minha mãe tinha apenas 25 anos. Entregou seu marido com 27 anos e nossa irmãzinha mais nova, com apenas cinco meses, no dia do enterro de nosso pai. Ficou com três meninos: meu irmão mais velho com seis, o mais novo com dois e eu com quatro anos. Nunca quis casar-se novamente e viveu seus 73 anos como uma das mais virtuosas mulheres que conheci. Especializou-se como costureira de calçados. Trabalhava sozinha para “criar” os filhos, saindo às 6 horas da manhã, retornando às 21 horas. Morávamos com os avós paternos. Mesmo antes de freqüentar a escola, éramos responsáveis pelos serviços domésticos, cuidando dos animais, plantação em terrenos arrendados. Desde a limpeza geral, o cultivo do jardim na frente e da horta nos fundos da casa, ficava por conta dos três “Guris”, monitorados pela avó com o chicote na mão. Somente depois de todas as tarefas cumpridas, tínhamos uma hora diária de diversão. Brincávamos no quintal da casa e quando o serviço era aprovado, tínhamos o privilégio de jogar futebol num campinho gramado em frente de nossa casa. 

Nos finais de semana, minha mãe se encarregava da roupa: lavar e passar. Aos sábados, bem cedinho, andava do Bairro Liberdade onde crescemos, na cidade de Novo Hamburgo (RS) até o Centro – um trajeto de quatro quilômetros – a pé, para comprar o que não cultivávamos na horta de casa. Embora tivéssemos um rico pomar próximo à estrebaria das vacas, do cavalo, do chiqueiro de porcos e do galinheiro, nem todas as frutas vingavam.

Uma de nossas alegrias se resumia a uma maçã por semana! Eu era tão agradecido ao sacrifício de nossa mãe, reconhecendo com quanta dificuldade nos proporcionava uma maçã por semana, tratando-se de uma fruta possível apenas na mesa das famílias economicamente privilegiadas, que comia a minha – a minha maçã – bem devagar. Eu a escondia debaixo da cama e ela chegava a ficar preta, pois durava do sábado à terça-feira. A cada mordida, eu rezava uma Ave Maria de gratidão, valorizando o esforço e a dedicação de oferecer o possível, com um salário mínimo, suado mensalmente, por minha amada mãe!

A pobreza material não deve ser vista como “vergonha”. Enriquecer a pobreza com criatividade é o caminho da dignidade. A dignidade humana se conquista com educação de berço, valorizando os pequenos gestos e partilhando de nossa própria pobreza com os que têm ainda menos do que nós. Ser pobre ou desprovido de necessidades básicas não nos permite sermos mal-educados, desonestos, “barraqueiros” e desrespeitando o bem-comum, especialmente os espaços públicos reservados para todas as pessoas de boa vontade. Lamento tanto ver tanta sujeira em torno do que chamados de pobreza, quando muitas vezes também deixamos de cumprir com nossas obrigações, as mais básicas, como deixar um banheiro público limpo depois de usá-lo; não jogando nas calçadas ou praças objetos que não nos servem mais!

Pe. Gilberto Kasper

          Teólogo



quarta-feira, 10 de abril de 2024

QUEM FOI QUE TE CONVIDOU?

 

  QUEM FOI QUE TE CONVIDOU?

 

Eu estava com oito anos de idade. Estudava no Colégio Sagrado Coração de Jesus, na Vila Santo Afonso de Novo Hamburgo (RS). Servia como coroinha na Paróquia Sagrado Coração de Jesus, cuja Igreja Matriz fica situada em frente ao Colégio. Os Jesuítas, aos finais de semana, colaboravam com o Pároco nas celebrações e atividades pastorais. Iam de São Leopoldo, onde está o imenso Colégio Cristo Rei, na época Casa de Formação dos Padres Jesuítas, hoje Centro de Espiritualidade da Diocese de Novo Hamburgo.

O Padre Ivo Müller fizera seu estágio pastoral como Diácono transitório, em nossa Paróquia. Depois de ordenado Sacerdote foi celebrar uma de suas Primeiras Missas em nossa Igreja Matriz. Nós, os Coroinhas, preparamos tudo com grande zelo, para que a Primeira Missa do Néo-Sacerdote fosse solene!

As Senhoras do Apostolado da Oração prepararam um jantar muito chique no Salão Paroquial. A Irmã Neófita, hoje na feliz eternidade, era minha professora no Segundo Ano do então primário, hoje Ensino Fundamental I. Ela conhecia uma de minhas habilidades em declamar poesias. Para homenagear o Padre Ivo Müller a irmã pediu-me que decorasse uma das poesias do Padre Paulo Aripe de Alegrete (RS). Foi um grande poeta e preservava a tradição gaúcha, como CTG – Centro de Tradições Gaúchas e a Missa Criola. Suas poesias, em sua maioria, eram voltadas à linguagem gauchesca. Uma delas chamava-se “Minha Primeira Missa”! Esta poesia contém quarenta longos versos. Foi a escolhida para que eu a declamasse antes de servirem o jantar ao Néo-Sacerdote no Salão Paroquial muito lindamente preparado.

Terminada a Solene Primeira Missa do Padre Ivo, fomos ao Salão Paroquial. Eu, de família muito humilde, jamais vira um Salão tão lindo e cheio de pessoas, prestes a jantarem, manifestando assim sua gratidão por um Padre tão querido da Comunidade. Padre Ivo Müller era acolhedor e tratava com especial dedicação crianças, jovens e idosos. Todos o admiravam, eu inclusive.

Tão logo Padre Ivo adentrou ao salão, depois de cumprimentado por todos, alguém pediu silêncio. Já sentados às mesas, puseram-me sobre uma delas, bem no meio do salão, diante da mesa do Néo-Sacerdote. Dona Generosa, a acordeonista de nosso CTG, brindou-nos com um belíssimo fundo musical e eu comecei a declamar aquela longa poesia: “Minha Primeira Missa”, em homenagem ao Padre Ivo. Ficara muitas horas ensaiando diante do espelho até chegar aquele dia. Minha declamação foi perfeita. Principalmente as Senhoras do Apostolado, mas também o Padre Ivo, permitiam lágrimas de grande emoção escorrem rostos abaixo. Alguns se diziam arrepiados de tanto que gostaram da poesia, uma verdadeira prece de gratidão de um Padre recém-ordenado.

Terminada a homenagem, o Padre Ivo me segurou no colo e me cobriu de beijos e abraços. Eu ainda muito pequeno, mais parecia um botijão de gás, ouvia os aplausos e elogios de todos os lados, mas sentindo-me um tanto deslocado e envergonhado por não ser aquele meu ambiente: era chique demais para alguém tão pobre e simples como eu. Mesmo assim as Senhoras do Apostolado e o Padre Ivo insistiram que eu me assentasse à mesa para jantar com eles. Resisti, mas me convenceram e sentei-me próximo a um grupo de Senhoras ainda muito emocionadas.

Quando já me haviam servido a salada, senti uma mão firme e pesada sobre meus raquíticos ombros. Olhei para trás e vi a Irmã Neófita, vestida de hábito negro olhando com um olhar repreensivo para mim. Falou com voz firme, embora em som baixo: “Quem foi que te convidou para jantar? Teu serviço já acabou, some daqui. Este lugar não é para ti”. Sem nada dizer, levantei-me e saí correndo entre as mesas. Corri quatro quilômetros até chegar em casa, chorando, sem nada dizer a ninguém. Por muitos anos senti dificuldade de aceitar qualquer convite para jantar. Depois, com excelentes terapias superei o trauma, e escrevo hoje para pedir aos meus leitores: jamais traumatizemos uma criança. Amemos as crianças e sua pureza sempre!

Pe. Gilberto Kasper

          Teólogo



quarta-feira, 3 de abril de 2024

DOMINGO DA DIVINA MISERICÓRDIA!

 

DOMINGO DA DIVINA MISERICÓRDIA!

 

 


 

 

 Ser misericordiosos como o Pai é um desafio e ao mesmo tempo é nossa vocação, pois fomos criados para ser “imagem e semelhança de Deus”. Celebraremos no Segundo Domingo da Páscoa, que encerra a Oitava da Páscoa, O Domingo da Divina Misericórdia!

 

                      A Misericórdia é um sentimento nobre, suscita compaixão e perdão; lembra a nossa miséria (miseri) e o coração (cordis) bondoso de Deus. Contudo, no pensamento hebraico, misericórdia também significa aquele sentimento que tem origem nas entranhas maternas (rahamin), semelhante àquele amor do pai que acolhe ao filho pecador e tem carinho com o filho mais velho que não perdoa o irmão. Ser misericordiosos como o Pai é também viver a fidelidade ao seu amor quando amamos e nos preocupamos com nossos irmãos.

 

                      Ser misericordiosos como o Pai num mundo violento e intolerante é um desafio que nos oferece a chance de apagar as chamas de violência e desrespeito que a vida e dignidade humanas têm sofrido ultimamente. fanatismo, terrorismo, discriminação, intolerância são sintomas de uma sociedade sem inteligência que não sabe conviver com o diferente e com quem tem opiniões diferentes das que a mídia apresenta. Ser misericordiosos significa apresentar as condições para um diálogo franco e fraterno apontando soluções mediadas pela compreensão e por uma visão abrangente do mundo e da pessoa humana.

 

Misericórdia não gera resignação, apatia, desmotivação. Ao contrário, suscita esperança num modo de agir que não alimenta violência. A misericórdia alimenta o sentimento da bondade, da nova oportunidade ao passo que a violência mata as possíveis soluções para uma convivência pacífica. Misericórdia é o sentimento que cresce no coração dos que têm certeza que o outro é uma pessoa que merece outra chance, que precisa ser ajudada a se libertar das próprias escravidões e sentir-se novamente amparada por aquele sentimento amoroso que o pai dedicou ao filho mais novo que errou muito longe de casa. (Cf. Lc 15).

 

Ser misericordiosos não é o mesmo que ficar sentados de braços cruzados e esperar a banda passar, mas trabalhar em favor do bem, da verdade, da justiça e da fraternidade. Ser misericordiosos é também gritar em defesa da vida, é desmascarar as mentiras travestidas em propagandas enganosas que desrespeitam o direito do povo ser religioso e ter suas manifestações de fé; é também orientar para o bem os que andam iludidos pelo mal.

 

Ser misericordiosos é colaborar com a paz e torná-la realidade no meio onde vivemos; é praticar a caridade não por meio de discursos e sim pela atitude não discriminatória nem racista; é também entender Jesus Cristo quando diz “quero a misericórdia, não o sacrifício” (Cf. Mt 9,13).

 

Que Jesus Misericordioso nos ampare nesse tempo de tantos desencontros, tornando-nos pessoas melhores hoje do que fomos ontem. Saibamos aprender a amar um amor verdadeiro a partir das “surras” que levamos aqui e acolá. Aprendamos a valorizar a vida a partir de pequenos gestos de solidariedade, que temperados pelo amor, nos tornarão ainda mais Anjos uns dos outros!

 

Pe. Gilberto Kasper

          Teólogo